A história da locomotiva que esteve no Museu!

A Ferrovia do Riacho e a locomotiva “Porto Alegre”, por André Huyer*

No final do século XIX não havia sistema de esgotos em Porto Alegre. Os dejetos domésticos eram armazenados dentro das próprias casas, em tonéis, chamados de cubos, fossas móveis, cabungos, tigres, etc.. Uma ou duas vezes por semana os tonéis eram recolhidos por carroças puxadas por jumentos, e o conteúdo despejado no Guaíba, em um trapiche na Ponta da Cadeia (ao lado de onde hoje está a Usina do Gasômetro). O serviço de coleta e troca das fossas móveis era realizado por uma empresa privada, denominada Asseio Público.

Em 1893 a municipalidade resolveu que as fossas não seriam mais descarregadas no litoral do centro da cidade, mas em um local afastado dela mais de dez quilômetros, a jusante. O local terminou por ser a Ponta do Melo, hoje mais conhecido como o lugar onde funcionou o Estaleiro Só. Foi construída uma ferrovia especialmente para proporcionar este transporte, a Ferrovia do Riacho. A estação no centro da cidade estava localizada ao lado da Ponte de Pedra (largo dos Açorianos). Logo que iniciou os trabalhos de transportar o esgoto da cidade, em 1899, a ferrovia também iniciou o transporte de passageiros, até o bairro Tristeza, em janeiro de 1900. A estação de passageiros da Tristeza estava localizada onde hoje é a Praça Souza Gomes. Considerando que o transporte das fossas seria realizado pelo município, a empresa privada de coleta domiciliar foi encampada. Durante alguns anos, a administração da Ferrovia do Riacho esteve sob o comando do Asseio Público. Posteriormente também as empresas que faziam a distribuição de água encanada, Companhia Guaibense e Companhia Hidráulica Porto-alegrense, foram encampadas pelo município. Junto com o Asseio Público formaram o que veio a ser a Secretaria Municipal de Água e Saneamento, que por sua vez, em 1961 foi autarquizada, passando a denominar-se Departamento Municipal de Águas e Esgotos – DMAE.

Para executar o transporte ferroviário, foram adquiridas inicialmente duas locomotivas a vapor. Foram importadas da Alemanha, da fábrica Krauss e Cia., em 1895. Receberam os nomes de “Progresso” e “Victória”, com 40 e 60 cavalos vapor. Em 1907 a ferrovia recebeu do governo do estado uma terceira locomotiva, usada, de nome “Rio Grande”.

E em 1909 foi a adquirida a quarta locomotiva da ferrovia, também alemã da Krauss e Cia., que recebeu o nome de “Porto Alegre”. Com 65 cavalos vapor, ela custou, incluídos os materiais sobressalentes, 19:374$147.

O transporte de passageiros logo ultrapassou, em receita, o transporte de esgoto. A Ferrovia do Riacho também atendia os quarteis da Brigada Militar que existiam onde hoje é o Jockey Club. Foi utilizada para o transporte de pedras, tanto para a construção do cais do porto no centro da cidade, como para a pavimentação das ruas centrais. Em 1926 foi construído um ramal até a Vila Nova. Teve importância relevante para a urbanização da zona sul de Porto Alegre. Foi incorporada ao imaginário da população da zona sul, sendo citada em várias obras literárias, como de Augusto Meyer, Ary da Veiga Sanhudo e Olyntho Sanmartin.

Em 1933 a Ferrovia do Riacho foi incorporada à Viação Férrea do Rio Grande do Sul, para em 31 de março de 1936 encerrar as atividades. As locomotivas foram então esquecidas, até que na década de 1960 o assunto fosse retomado pelo jornalista Alberto André, pesquisador, que foi presidente da Associação Riograndense de Imprensa.

Ele e um grupo de interessados descobriram onde estava a locomotiva Porto Alegre, fizeram uma campanha e a antiga máquina da Ferrovia do Riacho foi instalada no Parque Farroupilha, em um local protegido por uma cerca, próximo da Faculdade de Medicina. Porém, algum tempo depois, algumas pessoas, bem intencionadas, tiveram a ideia de retirar a cerca em volta do monumento, para permitir a aproximação das crianças. Resultou que ela foi vandaliza e depenada.Para interromper a degradação, a locomotiva foi retirada do Parque Farroupilha, e acomodada no viveiro de plantas da SMAM, no Parque Sant’Hilaire, onde permaneceu nova temporada esquecida.

Em 1986 ela foi retirada do Parque Saint’Hilaire, reformada pela Rede Ferroviária Federal S/A, e instalado no Museu do Carvão, na cidade de Arroio dos Ratos. Para então novamente iniciar um processo de abandono e degradação, pois ficou sem qualquer conservação. O Museu estadual, não conseguindo fazer a mínima manutenção na locomotiva, repassou-a em 2008 para a prefeitura de Carlos Barbosa, que teria interesse em reforma-la e colocar ela em uma praça como atração turística. Porém, a troca do gestor municipal novamente relegou-a ao total abandono, em local desprotegido, exposta às intempéries e vandalismo, estando hoje na pior situação das últimas cinco décadas.

E é assim que este bem, que teve importante participação na urbanização da zona sul de Porto Alegre, e povoa o imaginário de seus moradores, aguarda novo destino. No momento, a prefeitura de Carlos Barbosa, intermediada pelo Ministério Público Estadual, já manifestou que não tem interesse em manter ela. Por outro lado, a comunidade da zona sul de Porto Alegre, através de várias associações comunitárias, reivindica que a máquina seja instalada na Praça Souza Gomes, onde ficava a Estação da Tristeza, a qual ela atendeu de 1909 a 1936. A SMAM estuda reformar esta praça, e já reservou local para instalar a locomotiva, dando importante contribuição para preservar o pouco que restou da Ferrovia do Riacho, um bem de valor cultural inestimável. A representação da Secretaria Municipal da Cultura igualmente já manifestou sua não objeção à operação de resgate.

Ainda, esta locomotiva a vapor guarda outro testemunho: a Ferrovia do Riacho é o único caso que se tem notícia, em todo o Brasil, de uma ferrovia municipal. Foi concebida, projetada, construída, paga e operada pela municipalidade de Porto Alegre.

Autor: André Huyer – Arquiteto e Urbanista, UFRGS/1985; Especialista em Patrimônio Cultural em Centros Urbanos, UFRGS/2007; Autor da dissertação de mestrado “A Ferrovia do Riacho: um caminho para a urbanização da zona sul de Porto Alegre” (UFRGS/PROPUR/2010) e do livro “A Ferrovia do Riacho: do sanitarismo à modernização de Porto Alegre” (2012).

Contato: andre@huyer.arq.br


Dissertação de mestrado disponível em:http://www.ufrgs.br/propur/teses_dissertacoes/Andre_Huyer.pdf